terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Os últimos seis meses

(onde se faz um balancete da tribo)


Celebrámos os 16 anos do Diogo em Metz. Pela primeira vez desde que estamos na Bélgica, filho crescido não tinha um exame no seu dia de anos, porque era fim-de-semana. Obrigámo-lo a ir passear até França com os livros atrás. Acabou por admitir que tinha sido uma óptima ideia intercalar o estudo com passeios turísticos. Bebeu a sua primeira cerveja, com um orgulho desproporcional ao teor alcoólico da mesma. Antes do jantar festivo num restaurante indiano de duvidosa qualidade, um telefonema ditou o início do fim.

Coisa pequena enfrentou os exames finais com uma displicência inusitada. E uma enorme lazeira. A pré-adolescência apareceu sem aviso prévio e apanhou-nos a todos de surpresa.

A queixa por ofensa à integridade física do meu filho mais velho foi finalmente arquivada. Quatro anos mais tarde. Porque entretanto o “ofendido” fez 16 anos e o tribunal achou por bem perguntar-lhe de sua justiça. Pobres crianças que efectivamente são espancadas em Portugal. Talvez o problema ficasse resolvido se, em vez de se limitarem a arquivar falsas-queixas, começassem a criminalizar os falsos-queixosos para ver se os dissuadiam. A longo prazo, talvez restassem apenas as queixas verdadeiras e se conseguisse acudir às reais vítimas em tempo útil.

O Diogo desistiu de fazer o exame final do curso de trompete. Eu aceitei. Contrariada, mas aceitei. O meu amor, nem por isso. Tivemos a nossa primeira discussão sobre os rapazes. Foi estranho. Mas ambos concordámos que devia continuar a tocar na Ardennaise.

O ano lectivo terminou. E eu suspirei de alívio. Passei nove meses a correr contra o tempo, sem nunca me conseguir organizar totalmente. Os rapazes tiveram bons resultados nos exames, mas nem esperámos por Julho para fugir de férias.

Passámos duas semanas de sonho nos Açores. Dou por mim a rever aquelas fotografias vezes sem conta. Pedacinhos de felicidade em imagem.

Fizemos obras em casa. Dias e dias e dias a fio. Jurei para nunca mais (entretanto, já me passou). Ficou linda! Cada vez gosto mais desta casa. O nosso lar. Se pudesse ficava aqui para sempre.

O meu irmão Pedro mudou-se para Eindhoven. Agora, o meu bebé-tóxico está apenas a duas horas de distância. Por ironia do destino, o Belga é o único que o compreende quando desata a falar holandês (felizmente a toxicidade tende a desaparecer à medida que crescem).

Em Agosto, rumámos ao sul da Bélgica. E ao Norte de França. Ainda não sabíamos, mas passámos as nossas últimas férias do ano a dois, sem filhos. Estivemos uns dias num hotel que parecia saído dos anos oitenta. Foi muito giro. Demos bons passeios. Descansámos. Comemos divinalmente.

Em França, vimos um espectáculo de aves de rapina absolutamente fabuloso.

Filho crescido decidiu que não queria passar mais férias com o outro lado e, mal fez 16 anos, escreveu ao tribunal a dizer isso mesmo. Responderam-lhe que teria de continuar a ir até haver novo processo. Fiz-me de desentendida. Durou até chegarem de férias, no final de Agosto. E eu receber um e-mail a dizer que o Diogo era um criminoso, um ladrão, um delinquente, um cobarde, um alienado… apenas porque tentou levar às escondidas o violininho que o irmão pede em vão há anos para trazer. Percebi que o inimigo tinha mudado de táctica. Filho crescido passou de bestial a besta, para poder servir de prova na “fábula dos alienados”. Salva-se o Vasco, que agora terá absolutamente de ser resgatado in extremis da loucura que reina nesta casa. Se esta gentalha dedicasse metade do seu tempo a escrever argumentos de telenovelas ainda ficava rica. Assim, acabam apenas ridicularizados na barra do tribunal.

No início de Setembro, estiveram uns dias de sol maravilhosos. Durante os fins-de-semana, fingimos que estávamos de férias. D. Fuas Roupinho foi a banhos e, pela primeira vez, não entrou em pânico.

Filho pequeno iniciou o seu último ano na escola primária e eu senti um alívio indescritível. Seis anos. Finalmente, chegámos aqui. Os anos mais difíceis ficaram para trás. Consegui driblar os horários das suas mil actividades extracurriculares, não sei bem como. Olhando para trás, parece-me um feito incrível.

Filho crescido iniciou o seu penúltimo ano. Parece que anda num daqueles colégios dos livros da Enid Blyton. No 11.º ano, os alunos começam a ter favores especiais. Organizam festas e actividades. E detêm uma sala exclusiva, onde podem aquecer o almoço e comer. Os professores já os tratam como gente grande, mas ainda não consigo vê-lo voar sozinho...

A minha irmã mais velha veio visitar-nos com o meu sobrinho. Gostei tanto de a ter cá. Acho que é das pessoas que mais falta me faz, nesta nova vida que creei.

Como prenda de despedida, a minha irmã Ana ofereceu-me uma fritadeira de ar pulsado e eu reconciliei-me com os rissóis de peixe. Há “fritos” que resultam melhor do que outros, é verdade. Aos poucos, vamos aprendendo. As batatas fritas ficam uma delícia! O mamarracho de fazer “fritos” saudáveis foi sem dúvida a grande descoberta deste ano.

Finalmente, fui andar de balão. À terceira, foi de vez! Aproveitámos para passar o fim-de-semana em Waterloo. Sobrevoámos aquela zona ao pôr-do-sol. Admito que tive um ligeiro ataque de pânico quando vi a quantidade de pessoas que ia trepar para dentro do cesto gigante. Aquilo mais parecia um autocarro voador. Mas quando estamos no ar, cada grupo no seu cestinho separado, até nos esquecemos uns dos outros. Foi muito giro.  E durou uma eternidade. Contrariamente ao que imaginei, não fiquei enjoada (o meu amor explicou porquê, mas eu ainda estava na fase pós-pânico e não percebi nada). Nem com medo. Nem com nada. Estamos a tantas centenas de metros do chão e a vida parece que pára. Só nós e a paisagem. Nós e o céu a pintar-se de cor-de-rosa. Beijei o meu amor ao pôr-do-sol, foi o ponto alto da viagem.

Fui uma boa vizinha este ano. Ajudei os que estão literalmente à minha volta. O meu amor ainda não se habitou a ver entrar vizinhos pela porta traseira, mas eu adoro o pragmatismo da vida no campo. É tão mais fácil e rápido recorrer a quem está mesmo ao nosso lado. Simplifica a existência de todos nós. Faz-me sentido.

O Vasco agora faz parte do grupo dos mais velhos da escola e isso continua a parecer-me estranho. Eu, que ainda o vejo tão pequeno. Percebi que o melhor amigo, basquetebolista ucraniano, deve ter a mesma opinião. Vejo-o muitas vezes no recreio, com um braço protector à volta do meu baixote. No outro dia, a escola organizou uma actividade ao ar livre. Coisa pequena liderou um grupo de cinco crianças mais novas num percurso aventureiro através dos bosques. Pior que temer que nunca mais encontrasse o caminho de volta, foi pensar que podia perder alguém pelo caminho. Enchi-lhe a mochila de doces e avisei-o que os fosse distribuindo amiúde, de modo a manter o rebanho motivado. E unido. Principalmente, unido. Chegaram em penúltimo lugar, mas vinham todos. Em que condições, não sei. Provavelmente, sedentos. E com um pico de glicémia. Mas não faltava ninguém. Foi uma vitória. Filho pequeno chegou a casa com aquele seu sorriso.

Fiquei oficialmente desempregada. E não voltei a ter traduções. Tive muito tempo para pensar. Demasiado tempo para pensar. Alturas houve em que perdi um bocado o Norte, de tão à deriva que andei. Entretanto, uma luz ao fundo do túnel começou a delinear-se devagarinho. Às vezes, parece que temos de sofrer um bocadinho para crescer.

Iniciei o curso de empreendorismo e, na recta final, percebi que não era nada daquilo que eu queria. Talvez a formação em gestão e contabilidade tenha contribuído ligeiramente. Não me custou nada abandonar aquele sonho. Não sou uma empreendedora. Acho que o auto-conhecimento é sempre uma mais-valia. Quanto mais me conheço, mais sei o que quero (e, principalmente, o que não quero). Além disso, encontrei pessoas extraordinárias. Aprendi imenso. Continuo a pensar que o mais importante é o acto de aprender, não o conteúdo da aprendizagem. Gosto de aprender.

Neste último ano, deixei cair definitivamente as barreiras. E ganhei o afecto inesperado de uma nova família. Boas pessoas geram boas pessoas. O meu amor tem os melhores pais do mundo.

O Vasco e eu passámos um dia mãe-filho fantástico, no jardim zoológico de Aachen, na Alemanha. Descobrimos que há recintos de animais com uma espécie de entrada para humanos, que não permite a saída da bicharada. Muito giro.

Tornei-me auto-suficiente em inúmeras coisas: alimentação, produtos de limpeza, produtos de higiene… Depois, percebi por que razão a Béa Jonhson perde tanto tempo no seu livro a falar dos erros e exageros iniciais. Encontrar o ponto de equilíbrio é essencial a uma gestão saudável do tempo. Acho que estou no bom caminho.
[ fiambre caseiro... acabaram-se os corantes, o açúcar, o excesso de sal e os sulfitos ]

O meu amor e eu vivemos a nossa primeira separação. Durou uma semana. “Cinco dias”, corrige o meu amor. “Quase uma semana”, defendo eu. A verdade é que me pareceu interminável. O Vasco nem deu por isso, porque o meu amor está muitas vezes fora. O Diogo gozou connosco. Passou uma (quase) semana a dizer que não sabíamos viver um sem o outro. Tinha razão. Pagámos a factura de termos construído uma relação baseada na premissa da liberdade individual. Cinco anos volvidos, nenhum de nós queria continuar nessa direcção. As coisas mudaram. Nós mudámos. Mas esquecemo-nos de o confessar. Ou tivemos pudor.

Na noite em que o meu avô António faleceu, o meu amor voltou. Numa hora, apenas. Secou-me as lágrimas. Comprou-me os bilhetes de avião. Fez-me a mala. Levou-me ao aeroporto. E aguentou as pontas em nossa casa durante uns dias. Quando regressei, falámos. Mas não dissemos grande coisa. Decidimos que para onde um de nós for, o outro irá atrás. Sempre. Porque só fazemos sentido juntos. Pela primeira vez, admitimos que “sempre” já não é demasiado tempo.

Encarei a morte do meu avô com alívio. Quando a cabeça já não está cá, o corpo também deve ir indo. É uma questão de respeito pela pessoa que outrora ocupou aquele receptáculo (e mais uma vez respirei de alívio por viver num dos países mais progressistas do mundo em termos de eutanásia). Apesar de tudo, há um sentimento de perda. Perda de memórias de uma infância que parece cada vez mais distante, onde os meus avós paternos foram tão presentes e importantes. Perda de um futuro cada vez mais próximo, na velhice dos meus pais que não posso acompanhar de perto. Salva-se a família. A de sangue e a de coração, ambas tão chegadas. Gostei muito de ver a família toda. E de ver que nos unimos sempre que um bocadinho do nosso mundo desaba.

Filho pequeno celebrou os seus 11 anos como os ciganos, com uma festa de três dias. Enfim, foram três dias separados por várias semanas. A primeira festa foi no Halloween, com a casa decorada a rigor para receber os amigos. A segunda, em casa dos pais do meu amor. A terceira, num restaurante brasileiro em Dublin (o bolo de aniversário foram brigadeiros). A quarta, quando chegámos. A última, na escola. Em Dezembro. Não somos supersticiosos, o Vasco pode fazer anos antes e depois da data marcada, ninguém se incomoda. Bem vistas as coisas, também andei nove meses grávida a celebrar a vida.

Este ano, começou a nevar no Outono. Felizmente, ainda não tinha tido tempo para trocar os pneus-neve do Inverno passado, pelo que não fui apanhada desprevenida como é hábito.

Em Novembro, estivemos em Dublin com o tio Rui. Não ficámos no hotel do Bono só porque não calhou… arranjámos outro, um nadinha mais em conta. J Mas foi espectacular. Fazia um frio de rachar, embora estivesse sol. O meu amor arrastou-se estoicamente atrás de nós, a espirrar desalmadamente. A última vez que o vi ter uma crise alérgica destas foi em Frankfurt… com o Rui. Acho que ele é alérgico ao Rui.

Nos últimos seis meses, fiz dez viagens de avião. Tão cedo não me apanham noutro. Hum… pelo menos, antes de Abril.
  
O Saint-Nicolas trouxe-nos imensas prendas e umas camisolas pirosas de Natal, com que andava a sonhar há anos. Iniciámos uma tradição pirosona do melhor e fizemos furor no jantar de Natal.

Passámos o Natal na Holanda com a avódrasta, o tio Pedro e o bebé-tóxico. Comemos bacalhau da Deolinda. Só faltou mesmo a Deolinda. Mas o bacalhau da Lena à Deolinda estava excelente, é preciso que se diga. Nunca tinha oferecido uma prenda que tivesse tanto sucesso como a garagem que dei ao Luca. Foi o cabo dos trabalhos montar aquele mamarracho com ele a brincar ao mesmo tempo.

Pela primeira vez, chegámos ao final do ano com saldo positivo em termos de lixo. Em Janeiro, a Commune distribui os sacos que julga necessários ao agregado familiar. É unânime que o Estado belga tem um optimismo a raiar o utópico em relação aos dejectos dos cidadãos. Não conheço ninguém que não precise de começar a comprar sacos do lixo lá para o Verão. Este ano, sobrou-nos quase um rolo de sacos. Para mim, foi uma das nossas maiores vitórias ecológicas de 2017.

Deixei-me de merdas e permiti que o pai do meu amor me salvasse um dente que estava dado como perdido. Ele fez magia. Fez uma obra de arte, na verdade. E ficou tão feliz e orgulhoso! Pela primeira vez na minha vida, larguei à gargalhada na cadeira do dentista. Retribui com uma visita ao circuito de fórmula 1 de Spa-Francorchamps (com direito a dar umas voltinhas na pista num carro de corrida).

Coisa pequena começou a fazer o trajecto casa-escola-casa completamente sozinho. Nunca chegou atrasado. Ainda não perdeu a chaves, nem o chapéu-de-chuva. Nem a mochila. Nem o casaco. Não vos consigo dizer o quão orgulhosa estou deste feito.

Com tantas viagens a Portugal, estes últimos seis meses estive muito próxima da minha amiga Ana. A eterna madrinha de tudo e mais alguma coisa. Companheira de inúmeras aventuras (a última das quais bastante rocambolesca, que a malta recusa-se a crescer). A sua ausência custa-me todos os dias.

O Vasco iniciou o seu último ano do curso de solfejo, com uma voz ainda tão cristalina! E o primeiro no conjunto de cordas, ao lado de vários adultos. Diz que é demasiado falador. Ralhei com ele. Parece que não melhorou.

Desisti de fazer bolos paleo…e, com isso, da alimentação paleo tout court. Fazer bolos sem usar açúcar ainda consigo. Fazer bolos sem usar farinha de trigo é impossível. Parabéns a quem consegue, sois os maiores! Eu capitulei. Prefiro que os miúdos continuem a deliciar-se com os lanches que mando para a escola e não se atirem a outros doces para compensar. Os meus bolos nunca serão tão saudáveis como eu gostaria, mas são bons. E caseiros. Há que saber as batalhas que queremos ganhar.

Iniciei mais uma batalha judicial. Desta vez, a pedido de um filho. Mas o outro também quis fazer ouvir a sua voz. Sei que não será a última. Porque os rapazes crescem e isso implica mudanças. Infelizmente, até agora as mudanças vão sempre no sentido de se aferroarem a nós como carrapatos. Lá haverá o dia em que hão-de começar a querer viajar sozinhos por esse mundo fora. Aguardo com ansiedade.

O Diogo trabalhou bastante nestes últimos tempos. Sempre com brio e profissionalismo. Mesmo doente. Mesmo em dias de enchente, quando abriram as pistas de esqui na Baraque. Mesmo quando só lhe apetecia passear com a namorada. Continua a adorar aquele restaurante como se fosse a sua segunda casa (terceira, vá… a segunda casa é a escola). Mais do que dinheiro, ganhou maturidade. E comprou uma vespa em segunda mão com as suas economias. Tento calar o medo comprando capacetes luminosos e luvas à prova de bala. Não resulta lá muito bem…

Mandei pela primeira vez o filho pequeno sozinho para Portugal. Começou a chorar ainda nem tínhamos saído de casa. Encerrei 2017 a fazer um das coisas mais difíceis deste longo ano. E a semana seguinte não foi mais fácil. Recebemos dezenas de SMS todos os dias. Cada um de nós. Dezenas. “ET phone home”, repetiu ele à exaustão. E não pude deixar de pensar que este meu menino tem uma sensibilidade enorme para interpretar emoções. Possa essa ser a sua maior arma de defesa.

Celebrámos o ano novo a fazer voluntariado. Filho grande e a namorada decidiram acompanhar-nos. À meia-noite, estava cada um para seu lado. Eu estava a carregar pilhas de loiça para a cozinha. Não houve tempo para pedir desejos. Achei que foi mesmo bem passado. O meu amor derreteu corações à sua passagem e estive quase, quase para dizer “É meu” (mas tive vergonha). Filho grande recebeu rasgados elogios. Dessa vez, disse logo que era meu sem vergonha nenhuma. Humildade em demasia não faz bem a ninguém. Estranhamente, parece que os jovens gostaram muito desta passagem de ano altruísta (o facto de terem enchido o bandulho de permeio deve ter tido uma enorme contribuição).