segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Mapa dos afectos

(onde se mostra a nossa geografia dos afectos cambiante)



No Verão passado, o meu mapa dos afectos sofreu uma mudança. O país à beira mar plantado começou lentamente a distanciar-se, como na Jangada de Pedra. A navegar à deriva. Demorei algum tempo a perceber. Quanto dei por ele, já estava em mar-alto. E a distância era intransponível.
Tudo começou na embaixada portuguesa em Bruxelas. Creio que só quem já teve o desprazer de lidar com aquela gente me compreenderá. É uma realidade paralela, absolutamente kafkiana. Um huis-clos claustrofóbico. Agarrem no pior da pátria-mãe, encerrem-no entre quatro paredes, a dois milhares de quilómetros de distância, e espetem-lhe uma bandeira portuguesa. Eis a embaixada portuguesa na Bélgica. Não conheço um único emigrante neste país que não tenha uma história de terror para contar sobre aquele antro, o único pedacinho de solo português a que temos acesso. Era suposto sentirmo-nos em casa, sentirmo-nos protegidos. Em vez disso, somos tratados como cidadãos de segunda, como escumalha. Em três anos, devo ter lá ido umas quatro ou cinco vezes. Fui sempre maltratada. Na penúltima vez levei os meus filhos comigo, porque fomos fazer os passaportes. O Diogo começou a sentir-se tão mal, que teve de sair e esperar lá fora. Repetia descorçoado “Isto não é o meu país, mãe”. O pior é que é. O país do funcionariozinho sobranceiro e altivo, malcriado, profundamente estúpido, malformado. Que sente um prazer absurdo porque detém os fios da nossa vida.
Foi esta embaixada que recusou fazer os bilhetes de identidade dos meus filhos, porque a sentença belga que regulou o poder parental não está apensa às certidões de nascimento deles, nem nunca poderá estar dado que o tribunal português se declarou incompetente para julgar o caso destas duas crianças. E assim nos mantemos alegremente num impasse. Felizmente, temos os passaportes. E os bilhetes de identidade belgas. Foi esta embaixada que me trocou as voltas e não me deu as informações correctas para poder inscrever-me nos cadernos eleitorais a tempo de votar nas autárquicas. Senti que tinham andado a gozar comigo. Quando foi a vez das presidenciais, já eu tinha perdido a vontade de lutar por um país que teima em afastar-me. Estas últimas eleições mexeram comigo. E só agora, que passou algum tempo, consigo exprimir este desconforto. Não acompanhei a campanha, não me informei sobre os candidatos. Nada daquilo me dizia o que quer que fosse. Parecia que não era nada comigo. E também não sinto que este “presidente dos Portugueses” seja o meu presidente.
Portugal está cada vez mais longe do meu coração. Já não sonho com o céu de Lisboa. As saudades vão-se esbatendo. Deixaram de doer há muito. Nem toda a gente soube adaptar-se à distância e alguns afectos diluíram-se com o tempo. Detestei a última vez que estive em Portugal e tão cedo não tenciono regressar. Talvez porque tenha ido por pouco tempo, talvez porque tenha sido obrigada a tratar de burocracias várias, talvez porque tenha sentido uma enorme cobrança por parte da família chegada. Os amigos – aqueles amigos de toda uma vida – não me cobraram nada porque percebem. Estão dispostos a ver-me onde eu estiver, quando eu poder. Mas esses são os amigos para os quais não há longe, nem distância.
O tempo não dá para tudo. Não consigo acompanhar as notícias de cá e de lá. Mais o que se vai passando no mundo. Neste momento, o problema dos refugiados que vejo todas as tardes amontoados na paragem em frente à minha casa preocupa-me mais do que aprovação do novo orçamento de Estado português. Quando ouço falar no descalabro do ensino em Portugal encolho os ombros. O que me tem ocupado o espírito é saber como raio vou pagar sozinha os estudos universitários dos meus filhos neste país, onde é suposto os miúdos saírem de casa aos 18 anos. E nem me preocupei em explicar-lhes a atitude mesquinha desse senhor, quando deixou finalmente o seu poleiro, vetando uma lei que cá tem mais de uma década. Porque há coisas que deixaram mesmo de fazer qualquer sentido.
No outro dia acordei em pânico, com o despertador. Queria pensar e não sabia em que língua. Queria falar e não sabia em que língua. Os dois sistemas operativos que funcionam à vez no meu cérebro entraram em colisão. A verdade é que sonho em francês, penso em francês e falo maioritariamente em francês. Aos poucos, a Bélgica tornou-se também o meu país. O nosso país. E está na altura de parar de lutar contra isso. Dei por mim desejosa que o tempo passe, porque já decidi que vou pedir a dupla nacionalidade mal possa. Quando a tiver, os meus filhos tê-la-ão também automaticamente. Não se trata se uma mera formalidade ou de uma segurança extra, trata-se de uma vontade profunda de traduzir oficialmente a minha nova geografia dos afectos.

2 comentários:

  1. Boa noite, Rita! Uma das razões que me levou a encontrá-la e a segui-la prendeu-se com o facto de ser alguém que me contava como era a sua vida num país que conheço só de uma visita de alguns dias, não esqueço as viagens para depositar o lixo no país do lado...Depois comecei a descobrir as razões desse "salto", as vitórias e as peripécias, os crescimentos de um núcleo familiar já de 4, fora os animais! O que não contei da minha parte de leitora diária foi que sempre ambicionei viver noutro país, preferencialmente na Austrália, quando ainda ninguém queria ir para tão longe. Talvez por lecionar tantos anos outra língua, também me senti estrangeira no meu país, sendo que esses "pequenos poderes" que habitam a embaixada me põem doida...Eu sei que temos sol mas também concluo que, para ir a uma praia na orla da Costa da Caparica, só se pode ir em fila contínua numa estrada que permanece inalterada desde há dezenas de anos!O seu desapego a país também cresce em nós, os que já estão numa fase da vida em que sair daqui é opção apenas em dias de férias...Começamos a mudar de canal no período eleitoral, a não querer saber das vigarices pessoais ou institucionais porque ninguém acaba por ser considerado culpado, a cansarmo-nos das lutas para sermos reconhecidos como cidadãos de pleno direito! E,mesmo que desista da "terrinha",eu quero continuar a encontrá-la por aqui, é um consolo saber que há sítios onde as pessoas são GENTE! Beijinhos

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    1. Obrigada, Mariana. Tem sempre uma palavra doce. :)

      Entendo o que diz, o travo amargo que sente em relação a Portugal. Eu tenho esperança de que as coisas estejam a mudar. É pena que já seja demasiado tarde para nós...

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