terça-feira, 24 de março de 2015

Lançar sementes à terra

(e esperar que germinem)


 
Há cerca de um ano, o meu filho Diogo mudou. Não foi uma mudança que se fosse anunciando aos poucos. Um dia, voltou de férias assim. Meio fútil. A dar demasiada importância às aparências. À roupa de marca. Às iCoisas. Aos sinais exteriores de riqueza, como dizia o irmão desdenhoso. A anunciar aos sete-ventos que agora vivia na Lapa, o Bairro Fino de Lisboa. Assim mesmo, topónimo e epíteto seguidos. A dissertar sobre gadgets de carros de luxo. A falar de lugares in. De gente-que-conhecia-gente-conhecida.

No início, desvalorizámos. Achámos que aquilo acabaria por passar com o tempo. Mas, aos poucos, o comportamento dele também começou a mudar. A nossa relação passou por uma fase complicada. Tudo era alvo de críticas. Nós. As pessoas que nós somos. O nosso quadro de vida. O país onde vivemos. Os emigrantes.

A família tentava corrigir estas ideias com longas conversas. Chamava-o à razão, mostrava-lhe outros pontos de vista. Mandava livros. O Diogo teimava. Começámos a ficar preocupados. Eu comecei a ficar preocupada. O meu amor entrou claramente em pânico. Quem era aquele miúdo? Muitas vezes lhe fiz essa pergunta, meio a sério, meio a brincar: “Quem és tu e o que fizeste ao meu filho?!”.

No meio de tudo isto, tentávamos deslindar o novelo. Compreender o que se estava a passar. Que parte se devia à entrada na adolescência? Que parte se devia ao confronto natural com as figuras de referência? Que parte se devia a influências externas nocivas?

Acabei por desistir. Nisto de ser mãe, por vezes, é preciso desistir e saber esperar. Não desisti do Diogo, obviamente. Mas deixei de entrar em confronto com ele. Durante uns tempos, voltei a tratá-lo exactamente como quando tinha 2 anos e entrou naquela fase típica da oposição. Escolhi muito bem as minhas batalhas e só me bati por essas. Acabaram-se as longas conversas que não nos estavam a levar a lado nenhum. Acabaram-se as discussões e o interminável esgrimir de argumentos que nos deixavam exaustos e zangados. Havia coisas que eram como eu dizia e ponto final. Quer ele quisesse, quer não quisesse. Não havia disputa possível. Tudo o mais, era deixar andar. Ele que pensasse o que quisesse, que dissesse o que lhe apetecesse, que fizesse como muito bem entendesse. Entre mortos e feridos, alguém havia de escapar. O importante, naquele momento, era sobreviver. Ultrapassar aquela fase menos boa. E rezar ao deus dos ateus para que fosse breve.

O meu amor não compreendeu esta minha decisão. Expliquei-lhe que a melhor pedagogia é sempre o exemplo. É verdade que se trata de um método educativo penoso e demorado. É preciso esperar anos pelos resultados. Que exige persistência. E doses infinitas de paciência. Principalmente, é preciso ter fé. Acreditar que se deitarmos sementes à terra, mais tarde ou mais cedo, elas acabarão por germinar.

E assim fomos levando a nossa vida, tranquilamente. Uns dias, melhor… outros, pior, como é evidente. Mas, regra geral, o ambiente em nossa casa melhorou bastante. O meu amor não desistiu, inventou um método muito próprio que não interferia com o meu. Nunca ralhou com o Diogo, nunca o corrigiu. Se tinha alguma coisa a dizer, dizia-me a mim, em privado. Que me lembre, enervou-se apenas duas vezes, porque achou que o Diogo me tinha mesmo faltado ao respeito. De resto, esforçou-se por construir uma relação sólida com ele. Única, independente de mim e do Vasco. Tenta ao máximo ouvi-lo, estar presente, conhecê-lo. Aos fins-de-semana, vão jogar squash. Vão às compras sozinhos. Vêem filmes e séries que eu não gosto. Iniciaram o projecto do home cinema no sótão, de que falei aqui. Agora, com a chegada da Primavera, decidiram atacar o quintal. Cortam sebes, fazem vedações, recuperam a casa dos arrumos, constroem um galinheiro. O Diogo passa o dia na rua, como uma sombra, a segui-lo. Nunca pensei ver este meu filho de ferramenta na mão a trabalhar no duro. A fazer coisas sozinho, como gente grande.

Aos poucos, o Diogo começou a mudar. Voltou a ser o miúdo que sempre foi, mas com outra consciência das coisas. Às vezes, surpreende-nos com rasgos de lucidez. Faz comentários inteligentes, que reflectem uma visão mais madura. Ri-se imenso. É extremamente afectuoso. Vê-se que tem orgulho em nós, gosta de trazer cá os colegas. No outro dia, fez um amigo novo e disse que tinha “uma mentalidade como a nossa”. Trata o Vasco com uma meiguice de irmão mais velho que não lhe conhecia. Com uma certa distância. Voltou a interessar-se pelos animais e gosta de treiná-los. Está sempre disponível para nos ajudar no que for preciso. Muitas vezes, já toma a iniciativa sem sequer precisarmos de lhe pedir. Não tem medo de arregaçar as mangas. Já percebeu que as coisas feitas pelas nossas próprias mãos têm outro valor.

Este fim-de-semana, andámos a tratar do quintal e espalhámos terra pela casa fora. O Diogo varreu tudo sozinho, no Domingo à tarde. Ouvi-o pedir ao irmão para ter cuidado e tirar os sapatos antes de entrar em casa. Disse que tínhamos de arranjar uma caixa para pôr os sapatos na sala de jantar, junto à porta do quintal. “Não te preocupes, Vasquinho. O mano vai ver se arranja alguma coisa em segunda mão, que possamos recuperar. Ou, então, vai fazer uma.”

A Primavera, por aqui, já começou. As sementes que plantámos e que germinaram meses a fio, durante as estações passadas, começaram finalmente a nascer.

5 comentários:

  1. Às vezes inibo-me de comentar estes posts porque não quero parecer uma admiradora histérica ou uma comentadora patrocinada :D Mas a verdade, verdadinha, é que acho que és imensamente sábia e estou a tomar nota disto tudo para quando os meus chegarem lá, onde os teus vão sempre uns anos adiante. Boa colheita :)

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  2. LOL, Gralha! Eu também era grande admiradora de uma pessoa que escrevia umas coisas que me deixavam sempre a pensar, mas depois ela fechou o estaminé... ;)

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  3. Nem quero imaginar o dia em que os meus filhos chegarão a isso... acho que eventualmente usarei a mesma abordagem que tu usaste, porque sou apologista disso mesmo: de que há assuntos em que a última palavra é minha (e do pai) e que os nossos filhos aprendem pelo exemplo e no longo prazo aprenderão a valorizar-nos, mesmo que nos desdenhem por uns tempos...

    É que infelizmente eu tenho os meus diários de adolescente e às vezes folheio o que escrevi nessa altura e sabes o que descubro? Que eu fui uma adolescente muito parvinha e fiz a vidinha bem negra aos meus pais, na pior altura da vida deles os dois... e só me apetece voltar aos meus 15 anos e dar-me uns valentes tabefes, para ganhar juízo!

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  4. Ainda bem que já não tenho os meus diários, Naná! A soma "adolescente + parvinha" é uma evidência, não é? :)

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