segunda-feira, 28 de julho de 2014

Podia ter sido aí, mas foi aqui

(porque há coisas universais)


Domingo à tarde. Um hospital de subúrbio. Uma sala de espera apinhada, sem cadeiras livres. O ruído de fundo de um programa desportivo qualquer que ninguém está a ver. A televisão está demasiado longe e o volume demasiado baixo. O ar irrespirável e as pessoas a queixarem-se do calor sufocante. E do tempo de espera. Das suas mazelas e misérias várias.

Um tipo enorme cheio de tatuagens, peludo como um urso, a cortar as unhas com os dentes e a cuspi-las para o chão. Uma mãe obesa com uma enxaqueca insuportável concentrada a jogar no telemóvel. Ao lado, a filha gordinha brinca com um portátil infantil estridente. Depois de emborcar uma coca-cola, um saco de gomas e um pacote de batatas-fritas, choraminga: “Mãe, tenho fome!”. O homem-urso tenta fuzilá-la com o olhar, mas não funciona.

Um senhor todo aprumado, pólo Lacoste impecável, bermudas de linho e mocassins. A mãe velhota dormita numa cadeira de rodas. De repente, ouve-se uma música do Bob Marley. A velhota moribunda ressuscita. “Gosto muito do teu novo toque do teu telemóvel!”, diz-lhe a rir.

Uma família numerosa espera pela ordem de internamento de um tio. A mala já está à porta. Grande como se o doente fosse lá passar as férias de Verão. Trazem o farnel e fazem a festa. Contam histórias de família antigas. Riem muito. O benjamim da família, querubim de caracóis loiros, faz gracinhas que arrancam gargalhadas. Dá um empurrão na cadeira de rodas da velhota e bate à porta das urgências. Pregam-lhe um estalo.

Um casal discreto fala para passar o tempo. De vez em quando, ela pede-lhe desculpa por não ter conseguido ajudá-lo. Vê-se que está envergonhada por ter vomitado. Mas aliviada por ter aguentado a cena sem desmaiar. Parece que esteve quase-quase. Ele diz que não faz mal. Que ela tinha razão. Invadir o consultório do pai para tentar coser o próprio pulso aberto não tinha sido uma boa ideia. Que devia ter ido logo às urgências. Ela olha para o relógio e para a ligadura dele empapada de sangue. “Já passaram três horas! Parece que estamos em Portugal!”, comenta exasperada. “Schiuuu, não é grave…”, murmura ele fazendo-lhe festinhas.

Duas antigas colegas reencontram-se. Põem as novidades em dia. A mais nova conta que não dormiu nada. Esteve a noite toda na internet à procura de casa. Está aflita. E cheia de sono, mas primeiro está a filha, que mal consegue abrir um olho. “Fizeste bem em vir, amiga. Os filhos só podem contar connosco. Os homens nunca estão lá quando são precisos.”, diz a mais velha. A mais nova acena que sim e continua a narrar as suas desventuras. No final do mês, vai ser despejada. Um acidente impediu-a de trabalhar durante três meses e as contas acumularam-se. Não, já não está a fazer limpezas. Agora, trabalha num restaurante. Ganha-se mais. Está sozinha com os filhos. O ex-marido não paga a pensão. Não ajuda em nada. Está sempre a dizer mal dela e da vida miserável que oferece aos filhos. Mas comprou um carro ao filho, para irem restaurando aos poucos. O miúdo tem 14 anos. “Comprou o carro com o dinheiro que não me paga! Conseguiu seduzi-lo. Comprou-o. Agora já quer viver com o pai…”, diz entristecida. “Os homens são todos iguais! Canalhas de merda!”, atira a mais velha.

O homem-urso encolhe-se. O casal discreto troca um olhar e sorri. “Parece que estou a ouvir a tua história.”, diz ele baixinho. Ela concorda. A velhota moribunda também.

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