sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Sinto uma coisa estranha cá dentro, que não sei bem explicar

(e suponho que isso exija um post muito grande…)


Juntamente com o boletim das notas do Diogo, recebi uma convocatória para a primeira reunião de pais na escola nova (e uma factura avultada, mas isso são outros quinhentos). Assinalei os professores com quem queria falar e mandei por e-mail para os Educateurs. Depois, o Diogo trouxe-me o “meu horário da reunião”, com as horas e as salas onde os professores estariam à minha espera. Tudo muito organizadinho.

Bastante experiente nas artes de ouvir dizer mal do primogénito pelos vários professores que lhe foram calhando na rifa, ao longo dos anos, naquele distante país à beira-mar plantado, levei uma ordem de trabalhos muitíssimo bem preparada:

18h00 Prof. de Religião Católica
[Só para explicar que o Diogo é ateu, mas que gosta muito de mitologia. Vá… e que se não quer ser desacreditada publicamente, é melhor não dizer assim de chofre que foi Deus que criou o mundo. Trata-se de um homem da ciência; o livre de poche do momento é “Einstein e a Física Quântica explicada aos Jovens” (eu devo ser velha, porque não consegui passar da primeira página). Não é para assustar ninguém, mas ele é capaz de ter um ou dois argumentos na manga, portanto, é favor mandá-lo dar uma voltinha no recreio caso se torne muito incomodativo. E não levar a mal, que não é nada pessoal.]

18h20 Prof de Latim
[Para lhe perguntar que rambóia é aquela… onde raio andam as declinações e a conjugação?! Era a minha hipótese de brilhar como mãe e ela está a destruir tudo com a porcaria da história da Guerra de Troia. Toda a gente sabe que a única coisa interessante a dizer sobre o assunto diz respeito à prestação do Brad Pitt no filme, por isso, vamos lá às coisas sérias e toca a dar matéria à moda antiga, que os meninos não vão morrer.]

18h40 Prof. de Ciências
[Quero deixar bem claro que ele é, efectivamente, um homem comprometido com a ciência… mas na teoria. A observação de caracóis ainda vai, mas quando passarem à dissecação dos ratos, é melhor manter um olhinho no Diogo, que ele é rapaz para me desmaiar para cima das pobres criaturas. E se pelo caminho rachar a cabeça, ela vai ter de se ver comigo. Não é por nada, mas já passei pela experiência de estar com ele histérico, no hospital, rodeado de enfermeiras a segurarem-no enquanto cosiam a cabeça (do Vasco, não dele). E não foi agradável. Fora isso, parece ser uma excelente disciplina, ele está a gostar muito.]

19h00 Prof. de Matemática
[Esta deve ser a mais difícil, dada a minha natural aversão ao bicho propriamente dito. Mas, pronto, mãe que é mãe dá o corpo às balas. E eu tenho mesmo de pedir à senhora que, por todos os santinhos, me poupe à humilhação diária de admitir que não percebo um boi daquilo, que sou tão estúpida que nem consigo saber por que ponta hei-de começar (ie, googlar), portanto, se quer mandar trabalhos de casa, faça lá o obséquio de explicar primeiro como é que aquilo se faz. Muito agradecida.]

19h20 Prof. de Francês
[Só para controlar a cena geral, dado que é a directora de turma. E para explicar que não deve ficar ofendida por ele não andar muito motivado. Mas o livro interessantíssimo que acabaram de analisar na aula, o rapaz já tinha lido… com oito anos… sozinho. Agora, se ela quiser enveredar pela ficção científica, pelo fantástico e pelo policial de autor, tem ali um amigo para a vida.]
 
Este era o plano de ataque inicial. Mas, em hora e meia, o mulherio trocou-me as voltas todas.

18h00 Prof. de Religião Católica
[O Diogo tem uma vasta cultura geral. É interessado e interessante. Muito educado, já lhe tinha explicado que era ateu mas que respeitava todos os credos. Vê-se que é um miúdo feliz, está sempre bem-disposto, não consegue parar quieto no lugar, tem sempre algo a acrescentar ao que a professora diz. E fala muito na mãe. (Ih, ih, ih… ó para mim a babar!) ]

18h10 Prof de Latim
[Sim, senhora, é verdade que ainda não atingiram a velocidade de cruzeiro, mas há miúdos que têm dificuldade em seguir a matéria. (O quê?!) Não é o caso do Diogo, o seu melhor aluno. E o Latim, no primeiro ano, é suposto ser apenas um complemento do Francês e ajudar a consolidar conceitos gramaticais. Mas o Diogo já percebeu o esquema todo gramatical das declinações e já traduz frases. Que estava muito contente por eu ter pedido para falar com ela, porque gostava de ter a minha autorização para lhe mandar trabalho suplementar. (Ih, ih, ih… agora é que vou brilhar!) ]

18h20 Prof. de Ciências
[Os caracóis são animais um bocado parados para o ritmo frenético do Diogo. Mas o que ela gosta do Diogo! Que o rapaz não consegue estar sossegado, quer acabar tudo o mais depressa possível e, às vezes, não responde tão bem como podia. Daí ter tido apenas 16/20. Mas o que ela gosta do Diogo! Que lamentava muito, porque vê-se que tem um conhecimento muito avançado sobre ciências. Mas o que ela gosta do Diogo! Que não tencionava dissecar ratos, talvez corações… se conseguir arranjá-los. Parece que é difícil. (A sério?!) Mas que não me preocupasse, que prometia manter o rapaz debaixo de olho. E o que ela gosta do Diogo? E das histórias que ele conta sobre o namorado da mãe que é oceanógrafo? (Ih, ih, ih… Como?!?! Sacana do puto, estou farta de lhe dizer para não contar a minha vida toda pá!) ]

Estive meia-hora perdida às voltas na escola. Desce escadas, sobe escadas, atravessa corredores desertos. E vai de tirar uma bolachinha das mesas com comida que estavam em cada esquina. Já percebi para onde vai o dinheiro da porcaria da factura… Desce escadas, sobe escadas. Entra por uma porta, sai por outra. Até que desisti e me atasquei a um marmanjo que estava numa mesa a servir as ditas bolachas e um líquido-supostamente-cor-de-café, e lhe pedi que me levasse, por amor de Deus, à sala G018 antes que eu tivesse uma congestão com tanta bolacha enfardada no percurso.

19h00 Prof. de Matemática
[É verdade que o estudo da Matemática mudou muito desde o nosso tempo. (Não sou assim tão velha, o problema é a Matemática) Mas que está tudo explicado no livro: noções teóricas, exercícios, soluções. Que basta seguir o que lá está e vou perceber tudo. (Que parte de “o problema é a Matemática” é que ela não percebeu?!) Que o Diogo é um miúdo aplicadíssimo, vê-se que estuda imenso em casa. (É exactamente isso que eu gostaria de evitar) Que se fizer os exercícios extra que vêm no final de cada capítulo, que não há tempo para fazer nas aulas, poderá facilmente ter um 18/20 no exame, no Natal. (Deixe lá isso, minha senhora. As notas não são o mais importante) Que devia aproveitar as férias para avançar na matéria do livro. Que se o namorado da mãe, que é oceanógrafo, o ajudar tanto nas férias como é costume, o Diogo vai entrar no 2º período com o pé direito (Hein?! Sacana do puto, vai entrar mas é com os dentinhos todos partidos, que eu já estou farta de o avisar que não tem nada que falar na minha vida!) ]

19h20 Prof. de Francês
[O Diogo adaptou-se muito bem à nova escola, é um miúdo muito bem-comportado, popular e engraçado. (E eu a pensar que o palhaço era o Vasco) Os professores gostam imenso dele. Parece impossível que só tenha começado a falar francês há um ano atrás, tem um domínio perfeito da língua. (Hum, hum… e fala que se farta, já sei) É melhor aluno a Francês que muitos colegas. Mas é um bocadinho apressado, despacha tudo a correr. Quer ser sempre o primeiro a acabar, para poder ficar a ler no tempo que resta. (Menos mal, é da maneira que não fala) De facto, não mostra grande interesse pelos livros que andam a analisar nas aulas, pelo que ela decidiu que era melhor deixá-lo apresentar um livro à sua escolha. (Deus queira que não seja o da Física Quântica…) ]
 
E, pronto, saí de lá com uma sensação estranha cá dentro, que não sei bem explicar. É uma sensação nova. Sempre senti orgulho no Diogo, sempre soube do que ele era capaz. Mesmo nos piores momentos. Passei anos a bater-me por ele, contra ventos e marés. Contra professores que me chegaram a dizer que desconfiavam que o Diogo tinha um atraso qualquer. Contra colegas que lhe batiam e não gostavam dele. Contra o próprio Diogo, que entrava no jogo armando-se em rufião e me obrigava a ir à escola todos os meses ouvir queixas. Mas este filho mudou. Não cresceu, porque isso é outra coisa. Crescer, nestas idades, implica passar a outro estádio do desenvolvimento. O Diogo mudou. Teve a coragem de deixar cair a máscara, de assumir a sua verdadeira personalidade. Quando viemos para a Bélgica, agarrou esta oportunidade de recomeçar do zero e ganhou confiança. O orgulho que sinto agora é também um orgulho diferente. Olho para o meu filho e começo a ver uma sombra do que ele será. E isso enche-me o peito de um orgulho novo.

De repente, lembro-me de um poema do Pessoa que o Diogo gosta muito: “Valeu a pena? Tudo vale a pena/Se a alma não é pequena./Quem quer passar além do Bojador/Tem que passar além da dor.” Valeu a pena, sim. Porque a alma do Diogo nunca foi pequena, a auto-estima é que era. Mas quem tem esta coragem para enfrentar a dor e ultrapassar-se, superar-se, tem certamente uma vida fantástica pela frente. E eu sinto que o meu coração de mãe pode começar finalmente a respirar. Isto agora vai...

 

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